Num momento em que a Inteligência Artificial está a transformar todos os setores, as cooperativas enfrentam um desafio — e uma oportunidade — únicos. Como podem aproveitar a inovação tecnológica sem comprometer os valores que as definem: democracia, solidariedade e propriedade coletiva? Esta reflexão, conduzida por Ana Rita Antunes, Coordenadora Executiva da Coopérnico, explora de que forma a IA pode tornar-se uma verdadeira aliada da governação cooperativa — promovendo a participação dos membros, reforçando a transparência e garantindo que a transformação digital serve as pessoas, e não o contrário.
As cooperativas representam um modelo único de organização económica, onde a propriedade coletiva e a gestão democrática se fundem com valores como a solidariedade, a equidade e o compromisso com a comunidade e o ambiente. Num mercado dominado por empresas privadas — orientadas pelo lucro — e por entidades públicas — muitas vezes limitadas por burocracias —, as cooperativas destacam-se pela sua capacidade de conciliar eficiência com ética, competição com cooperação. Este equilíbrio delicado torna a Inteligência Artificial (IA), ao mesmo tempo, numa ferramenta de potencial transformador e uma fonte de desafios profundos. A questão central não é apenas como adotar a IA, mas sim definir o âmbito nas atividades desenvolvidas pelas cooperativas, mas também se deve estar na governança, pilar destas organizações.
A IA pode ser um catalisador de oportunidades para as cooperativas. Nas cooperativas de energia, por exemplo, algoritmos de machine learning podem otimizar a previsão de produção e consumo, otimizando os sistemas e tornando a energia renovável mais acessível e mais barata para comunidades vulneráveis. Na agricultura, a análise de dados em tempo real permite uma gestão mais sustentável dos recursos, alinhando produtividade com responsabilidade ambiental. Mesmo em setores como o retalho ou a habitação, a IA pode libertar capital através da eficiência operacional, reinvestindo-o em projetos que beneficiem diretamente os membros. Mas o seu potencial vai além da mera otimização: a IA pode reforçar a democracia interna. Plataformas de votação inteligente, tradução automática em assembleias ou sistemas de análise de dados, que tornem as decisões mais transparentes, são exemplos de como a tecnologia pode ampliar a participação, especialmente em cooperativas com membros geograficamente dispersos ou com diferentes níveis de literacia.
No entanto, os riscos são tão reais quanto as oportunidades. O maior perigo não é a tecnologia em si, mas a forma como é implementada. A desumanização da governança é uma ameaça concreta: se a IA passar a tomar decisões críticas — como a atribuição de créditos ou a seleção de fornecedores — os membros podem sentir-se alienados do processo democrático que define as cooperativas. Além disso, os algoritmos não são neutros. Quando treinados com dados históricos enviesados, os algoritmos podem reproduzir ou até agravar desigualdades, favorecendo, por exemplo, membros urbanos em detrimento de rurais. Outro desafio é o custo de oportunidade: enquanto grandes empresas investem massivamente em IA, o capital das cooperativas vem dos seus membros, com recursos limitados, o que pode criar uma desigualdade digital entre aquelas que conseguem adotar estas tecnologias e as que ficam para trás. E, talvez o mais preocupante, a centralização do poder: se apenas uma elite técnica gerir a IA, a regra “um membro, um voto” pode tornar-se uma formalidade vazia. Quem controlar a tecnologia, controlará a cooperativa — e isso é um risco para a sua essência democrática.
A privacidade e a soberania dos dados são outras questões críticas. Cooperativas lidam com informações sensíveis, desde dados financeiros dos membros até padrões de consumo ou saúde. Sem protocolos éticos rigorosos, a IA pode expor estes dados a usos comerciais não autorizados, minando a confiança que é o alicerce de qualquer cooperativa. Em setores como a saúde e a energia, onde os dados são particularmente sensíveis, a falta de transparência pode ter consequências graves, não apenas para os membros, mas para a reputação da organização.
Perante estes desafios, o caminho não é rejeitar a IA, mas adotá-la de forma crítica e alinhada com os valores cooperativos. Isso significa exigir que todos os algoritmos sejam explicáveis e auditáveis, investir em formação e literacia digital para que os membros possam participar ativamente nas decisões tecnológicas, e desenvolver modelos de IA cooperativos, como soluções de código aberto ou partilhados entre cooperativas, que reduzam custos e evitem a dependência de grandes empresas tecnológicas. Acima de tudo, a IA deve ser usada para facilitar a democracia, nunca para a substituir. Os algoritmos podem propor opções baseadas em dados, mas a decisão final deve sempre caber à assembleia, garantindo que a tecnologia serve os membros — e não o contrário.
A IA nas cooperativas não é uma questão apenas técnica, mas política e ética. O seu sucesso dependerá da capacidade de manter vivo o espírito que sempre definiu estas organizações: o mais importante são os membros e o modelo de governança democrática. A tecnologia deve servir os propósitos das organizações, e não tornar-se um fim em si. O desafio é enorme, mas a recompensa que pode ser uma economia mais justa, sustentável e democrática, vale bem o esforço.
Ana Rita Antunes
Coordenadora Executiva
Coopérnico